Episódio 41 - «Crocodilos» (António Brito Neves)


  Prefiro as histórias que se guardam no bolso, que posso levar para todo o lado. Foi assim que muitas se perderam, escorregando pela perna inclinada, ou esgueirando-se por um buraco inadvertido. Não lamento essas histórias idas, gosto de as imaginar por aí a serem vividas por quem as encontre. Foi certamente assim que o meu pai viveu a história que várias vezes tornei a receber para guardar como um tesouro nos meus bolsos esfarrapados. Há quem me garanta que os bolsos não foram feitos para guardar histórias, mas eu não acredito que haja caixas para isso. Prefiro pensar que as histórias nascem para se perderem em bolsos rotos e serem encontradas por crianças de todos os tamanhos.
  O meu pai, que nunca soube ser criança, conseguiu talvez perceber o que tinha descoberto quando encontrou esse relato que vezes sem conta nos ofereceu. E quantas vezes não o fez com uma frase apenas? Como poderia essa frase, tão esguia e estreita, não se enfiar pelo buraco das calças? Histórias assim querem fugir, querem enfeitiçar outras mãos, fugir de outros bolsos. O meu pai, garantia ele, matou um crocodilo à estalada em África.
  Assim mesmo, um crocodilo morto à estalada. Como duvidássemos, pedíssemos pormenores ou simplesmente nos ríssemos, ele desenvolvia um pouco, explicando como lhe pegara pelo pescoço e repetindo o movimento rápido com a mão a abanar para os lados. Pobre crocodilo, que certamente não esperava terminar os seus dias às mãos do meu valente pai, que em criança já só sabia ser adulto.
  O meu pai foi uma dessas crianças sépia que traziam a infância escondida dentro de si. Não sei onde ficou guardada tal infância, perdida em fotografias sem cor que nada contam. Incapaz de a guardar no bolso em histórias, risos ou impossibilidades, o meu pai fez-se um adulto que nunca foi criança depois de ter usado toda a infância de que dispunha. Sem histórias suas a não ser as de um adulto que nunca as viveu porque nunca foi a criança que se lembra de ter sido – do mesmo modo que não se lembra de ter sido a criança que foi –, o meu pai soube guardar para si essa história de uma frase que, como um crocodilo, rastejava pelo chão pronta a morder quem se aproximasse.
  Hoje o meu pai dorme sozinho, no escuro e de porta aberta. Já não há crocodilos para lhe entrarem no quarto enquanto dorme, e quando acorda não sonhou. Todos os seus sonhos estão arrumados juntamente com a infância que ele deixou de ter vivido. Todas as fotografias do menino meu pai contam histórias que ele decorou quando lhe ensinaram que ele mesmo as viveu. Poderiam também ser imagens desses sonhos perdidos que, por não serem recordados, nunca existiram.
  Gosto de pensar no pobre crocodilo como o melhor amigo do meu pai, aquele que lhe deu a história infindável que lhe permitiu encher-nos os bolsos. Por vezes, quando vejo o meu pai sentado no sofá da sala, julgo perceber o seu crocodilo a dormir-lhe aos pés e sorrio. Gasto uns minutos a ganhar coragem e finalmente peço-lhe que conte de novo a história de como matou o crocodilo à estalada em África. Mas então percebo que ele já adormeceu. O meu pai nunca esperou de nós qualquer pedido nem nunca nos pediu nada a não ser companhia quando adormece na sala. Nesse momento, suspeito que entra no sono com a esperança de que não deixaremos fugir os sonhos que o visitem enquanto dorme. Prometo a mim mesmo vigiar-lhe o sono e guardar-lhe os sonhos para quando ele acorde – mas a verdade é que nunca consegui apanhar-lhe nenhum. Talvez o crocodilo tenha aqui afinal a sua vingança e os engula a todos. Porque nenhum crocodilo se satisfaz com companhia. Tal como as histórias, os crocodilos engolem-nos sem darmos por isso.

 Bio António Brito Neves

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